Chico Buarque de Holanda e Roda Viva

Chico Buarque

Chico Buarque é daquelas figuras raras, não acho que seja possível questionar que ainda em vida, já garantiu o seu lugar importante reservado na história da música popular brasileira. Chico completou seus 78 anos em 2022 gozando de saúde invejável, além de participar de uma turnê com espetáculos em diversas capitais do Brasil com shows realizados em 2022 e outros marcados para 2023, sendo, lógico, a atração principal. Mesmo com sua idade avançada, ainda é desejado pelos fãs. Ao fim de cada música, é possível ouvir os gritos de lindo, gostoso, de sua platéia. Durante o show da turnê que aconteceu em Brasília, em novembro, Chico chegou até mesmo a receber um abraço não consentido de uma fã desesperada. É lógico que o abraço durou muito pouco, imagino que o segurança já imaginava que isso poderia acontecer e surgiu imediatamente para separar a fã de seu ídolo. Nem mesmo aos 78 anos Chico parece ter aprendido a lidar com o fato de ser alguém que é idolatrado, reagindo com uma cara de alguém sem graça que não sabe o que fazer, da mesma forma que fazia aos seus 20 anos. Aliás, esse é um dos temas abordados em sua música Roda-Viva.

Chico é conhecido por ser primeiramente um músico, mas também poeta. Porém, durante seus quase oitenta anos de vida, Chico Buarque de Holanda se mostrou um artista completo, com centenas de músicas gravadas, uma multiplicidade de romances como “Leite Derramado” e o vencedor do prêmio Jabuti “Budapeste”, além de ter escrito algumas novelas. A própria música “Roda Viva”, que está momento envolvida em um processo da justiça polêmico que falaremos sobre nesse artigo, foi composta e apresentada numa peça de teatro apresentada com o mesmo nome, “Roda-Viva”, em 1968.

Vida antes da fama

Chico é um dos sete filhos de Sérgio Buarque de Holanda, jornalista e historiador autor de muitas obras que têm a sociedade brasileira como tema, sendo a principal delas a obra “Raízes do Brasil”. Já no começo de sua vida adulta, Chico teve a oportunidade de tocar ao lado de grandes nomes como Vinícius de Moraes e Tom Jobim, que faziam parte do ciclo de amizades de seu Pai, intelectual respeitado, e frequentavam a sua casa. Com ajuda da influência de seu pai e seu talento extraordinário não só como músico mas também como compositor, com um senso de ironia aguçado, Chico não tardou a alcançar fama nacional ainda jovem.futebol aposta

Chico debutou em 1966 com seu primeiro álbum gravado, com o nome de “Chico Buarque de Holanda”. Ainda no mesmo ano, foi aclamado fervorosamente ao vencer o festival de MPB com a apresentação da sua canção “A banda” e foi aí que recebeu fama nacional, sendo muito tietado, principalmente pelas fãs femininas.

Sua música foi utilizada até mesmo como marchinha de carnaval em vários estados do Brasil. Foi nesse contexto que Chico, já conhecido na boca do povo, apresentou umas de suas obras-primas, Roda Viva, em 1967, junto com a peça de teatro homônima,

Chico Bio

Roda Viva

Roda viva é uma música em com ritmo contagiante de um bom samba, mas que carrega uma letra carregada de simbolismos e metáforas. A música é quase como um desabafo de como ele já estava começando a se sentir na época. A peça Roda-Viva retrata a história de vida de um artista vivendo o seu ápice, com fama e no começo até mesmo liberdade para se expressar de maneira livre, mas que é logo engolido pela desumana indústria cultural, explorado até a última gota de seu talento e depois é descartado por essa mesma indústria que logo vai atrás de um outro ícone. Como uma roda que nunca para de girar, que representa o tempo, o “grande equalizador”, que afeta a todos, sem exceção. Da mesma forma que o famoso personagem de “O Grande Gatsby”, Gatsby, tenta resistir à passagem do tempo durante o romance que termina com a estrofe “E assim prosseguimos, barcos contra a corrente, arrastados incessantemente para o passado”, o eu lírico de roda viva também sofre das mesmas angústias em relação ao tempo, evidenciado na estrofe da música de maneira similar “A gente vai contra a corrente, até não poder resistir”.

Estreia

A música foi performada para uma plateia pela primeira vez em 1967, durante o III Festival de Música Popular Brasileira, transmitido pela TV Record. Roda Viva ganhou o terceiro lugar da edição. Ainda que não tenha vencido o prêmio, competindo com nomes já consolidados da época como Edu Lobos e Gilberto Gil, hoje pode-se dizer que Roda Viva ganhou o prêmio não oficial de imortalidade, resistindo de forma poética a própria passagem do tempo, mostrando que o tema de sua abordagem é universal da condição humana, com força para resistir até mesmo a passagem do tempo e ainda ter potência para emocionar as pessoas 50 anos depois.

Participantes da gravação da Obra

Só um ano depois, em 1968, que a primeira gravação de Roda Viva foi realizada e lançada para o público em formato de vinil no disco “Chico Buarque de Holanda – Volume 3”. A banda que acompanhou Chico Buarque na gravação foi o grupo MPB-4, que tocou ao lado do artista durante toda a gravação do álbum com Miltinho, Ruy Faria, entre outros nomes. Com outras regravações ao longo dos anos, essa é considerada a principal versão.

Além da versão original de Chico Buarque, a obra “Roda viva” foi regravada diversas vezes por grandes músicos Brasileiros, sendo possível encontrar qualquer uma delas nas rádios. Dos músicos que gravaram roda viva, incluem Ivan Lins, Ney Matogrosso, Maria Bethânia, Vinicius de Moraes e Toquinho, Anna Lu e Fernanda Porto. É inegável que é uma música reconhecida e interpretada por diversos artistas de peso.

musica author

Inspirações do Autor

É evidente que a peça Roda Viva, que foi produzida logo após o sucesso monumental de “A Banda”, foi a melhor forma encontrada pelo artista para expressar e concretizar sua decepção pessoal com a vida de um artista nacionalmente famoso e todas as implicações que se tornar uma engrenagem importante da indústria desumana do Show Business representam numa obra de arte. Após ser censurada durante os anos de chumbo da ditadura militar Brasileira de 1964, principalmente após a implementação do AI 5, a música tornou-se conhecida por apresentar fortes conotações políticas. Em uma análise retrospectiva isso é óbvio, considerando que a letra fala das insatisfações de um personagem que se sente impotente, que não pode viver da forma que deseja por causa de uma força muito maior que ele que o impede de viver e o faz se sentir oprimido. Entretanto é possível reparar que na primeira versão da letra, essa conotação política é muito menos óbvia, e a letra evidencia a insatisfação de um artista esgotado, que se sente impotente com a mudança brusca de tudo da sua vida, sendo possível chegar em uma interpretação muito mais autobiográfica que representa o momento que Chico estava vivendo logo após virar uma estrela da música popular Brasileira.

Sucesso Imediato

Parece que sua com sua peça e canção “Roda-Viva”, Chico tinha a intenção de criar uma nova imagem sobre si mesmo. Num primeiro momento, sua imagem na boca do povo era de um “menino de ouro”, sempre com um sorriso no rosto, alegre e sambando. Com os temas mais sérios abordados em Roda-Viva, se comparados com os temas de “A banda”, Chico tenta transformar sua imagem de menino e se colocar no mundo como um artista mais sério, que não deve obediência a ninguém e que causa reflexões profundas com seus versos. Não é possível dizer se essa intenção atingiu os resultados que o autor esperava, mas não se pode negar que Roda Viva potencializou sua fama que já estava em rápido crescimento.

O arranjo da música que foi apresentada no III Festival de música popular Brasileira foi elaborado por Magro, do MPB-4, a pedido do próprio Chico. Também foi ideia de Magro a introdução memorável do grupo vocal no começo da canção. Após a introdução Chico entra como vocal principal, com suporte dos quatro integrantes do grupo MPB-4, que cantam algumas estrofes e fazem efeitos vocais durante toda a música, às vezes com um simples “pá, pá, pá” no ritmo dos instrumentos. No fim, a música se encerra em um loop do refrão “Roda mundo, roda gigante, roda moinho, roda pião, o tempo rodou num instante, nas voltas do meu coração” que se acelera cada vez mais. Chico incentiva a plateia a cantar junto esse refrão hipnotizante até que subitamente a música acaba, quando o ritmo está extremamente acelerado. E parece que esse ritmo tem o poder de contagiar os próprios aplausos, que parecem seguir o mesmo tempo frenético.

Holanda

Ataques a roda viva e Censura

Após o sucesso imediato da sua estreia e a imensa popularidade da peça “Roda Viva”, a obra atraiu a atenção de muita gente, fazendo os ingressos se esgotarem rapidamente. Infelizmente, nem toda essa atenção foi positiva. Em Julho de 1968, o espetáculo foi atacado por cerca de 20 membros do comando de caça aos comunistas, conhecido por CCC. Esses membros invadiram o teatro, agrediram física e verbalmente atores, membros da produção, funcionários do estabelecimento e até mesmo espectadores. Não fosse o bastante, eles também destruíram todo o cenário, causando a depredação do teatro Ruth Escobar. Poucos meses depois, quando a peça foi exibida em Porto Alegre, o ataque se repetiu e as autoridades decidiram cancelar a apresentação.

Não fosse o bastante, ainda nesse mesmo ano, em 1964, foi decretado o infame AI 5, que tornava legal a perseguição de qualquer um considerado opositor do regime militar, incluindo artistas.

Pouco tempo depois de aprovado, Roda Viva, tanto canção quanto peça foram proibidos pela ditadura militar Brasileira por serem consideradas subversivas.

Tantos ataques contra uma música que fala de uma força inexorável, repressora e autoritária mistura a obra com a própria realidade do país no período, além de reforçar a própria mensagem que é transmitida pelo autor, já que nada é inexorável, apenas o tempo. A história provou isso de verdade, já que nem a própria ditadura militar Brasileira sobreviveu uma força superior a ela, o tempo.

Polêmica envolvendo a autoria de Roda-Viva em 2022

De forma meio cômica, considerando que essa polêmica se passou mais de cinquenta anos depois que a música foi gravada, a situação que se seguiu mostra de forma no mínimo irônica, que o tempo realmente é uma força misteriosa. O deputado federal Eduardo Bolsonaro (defensor ferrenho da ditadura militar que trouxe tantos infortúnios na vida pessoal e profissional de Chico) reproduziu uma gravação em vídeo de Roda Viva numa publicação em uma rede social, sem a autorização do autor. Chico se mostrou incomodado e abriu um processo na justiça contra o deputado que pedia a remoção imediata da publicação. O pedido foi indeferido não só em uma instância, mais duas. Primeiro pela Juíza Mônica Ribeiro Teixeira, magistrada da cidade do Rio de Janeiro, que afirmou que não era possível provar a autoria da música por falta de documentos que comprovem quem realmente possuía os direitos autorais da música. João Tancredo, representante jurídico de Chico no caso, fez um pedido de reconsideração negado. João alegou que a Juíza agiu de forma “omissa e obscura” e fez um pedido para que se considerasse a decisão. Esse pedido foi negado pela Juíza novamente, para a surpresa não só de Chico Buarque e seu advogado, mas também Miltinho, do próprio MPB-4, que primeiro apresentou a música para os Brasileiros.

Pelo visto Chico não vai desistir do processo e está coletando mais evidências e pretende mudar o argumento. Para ele, o problema maior não é a só a exposição indevida da obra, mas o desvio da mensagem, que foi utilizada para defender tudo que ele sempre se opôs. Ainda mais saindo inimigo político que representa tudo aquilo que, para o artista, é crasso. Só posso dizer que infelizmente toda essa barbaridade autoritária ainda não foi levada pela corrente do tempo.

Em seu show em Brasília, Chico brinca com a plateia. Já perto do final do show, depois de falar quase nada entre as músicas, Chico resolveu desabafar para o público. Chico diz que nunca se incomodou muito pelo que os outros falavam dele, mas que o caso recente sobre a autoria da roda viva o deixou verdadeiramente indignado. Chico disse que ele nunca se incomodou com os xingamentos e palavras chulas dos opositores, porém ser acusado de “roubar uma música” de sua própria autoria foi o fim da picada. Pela reação do autor, podemos esperar que esse caso continue surpreendendo na justiça, já que aparentemente Chico vai até o fim.